Tu provavelmente estás te perguntando quem é Marcia Leite, mas já deves ter deduzido que ela é a bela mulher ao lado da atriz Maria Flor na foto acima. Muito mais que isso, ela é mãe da atriz e (ao lado da filha) é uma das responsáveis por um dos melhores seriados transmitidos atualmente, me refiro à série DoAmor (exibida todas as terças as 23h no Multishow). Por trás da produção ao lado de uma equipe super dedicada, Marcia é roteirista e diretora do seriado mais alternativo que já assisti. O enredo? A vida de jovens de classe média, com tipos que vão do “super certinho” ao “liberal sexual” e com cenas desprovidas de pudor ou censura e cheias de arte e referência artística alternativa. Tudo gira em torno do casal principal, Lulu (uma publicitária/artista super independente) e Pio (professor universitário do tipo “pra casar”), tudo começa do fim… sim, o seriado já começa do fim do relacionamento do casal e vai resgatando capítulo por capítulo o que os levou a tal ponto. Se isso não é o suficiente pra te deixar afim de assistir, ou se (assim como eu) já és fã da série, vale a pena ler a entrevista cedida pela Marcia (que foi super atenciosa e querida comigo desde o primeiro tweet) explicando muito do que há por trás da produção (realizada pela Fina Flor filmes). A cultura que envolve o universo dos personagens, os estereótipos (ou a quebra deles), o trabalho com a filha e muito mais do que eu esperava ler está aqui…
Quase Hype – O primeiro impacto ao assistir a série, logo no primeiro episódio se vê, é a inversão dos papéis tradicionais de “mocinha regrada” e “guri curtição noturna”. Gostaria de saber como surgiu essa ideia e qual foi o ponto de partida pra criação dos personagens e da série?
Marcia Leite – Os papéis tradicionais já não são tão comuns na vida contemporâneo, principalmente nas grandes cidades. Foi o que a gente, a equipe que criou a série DoAmor, observou.
Desde o início, a ideia era contar uma história simples, fazer um retrato de uma geração: o jovem adulto em torno de 30 anos, de um determinado grupo social – classe média de mente aberta, vivendo numa cidade cosmopolita – o Rio de Janeiro, que é grande e pequeno ao mesmo tempo. Então, olhamos para todos os lados e vimos, em meio à diversidade, alguns perfis clichês desta geração. Há a nova mulher cheia de gás e curiosidade, fazendo mais grana que os rapazes, lidando com a vida de forma mais ativa. E há o garoto passivo, mais filho do que homem, que pensa demais e age pouco, tem múltiplos talentos mas é indefinido profissionalmente, super informado mas não faz dinheiro. Quando a nova mulher e o menino inteligente moram juntos, há sempre um delicado conflito entre a ação e a indefinição. E quem faz mais grana e/ou tem mais sucesso profissional acaba sempre sendo o elemento decisivo da relação. O papel às vezes se inverte – nada é absoluto no mundo – e vemos também o menino pró ativo e a menina artista-sem-rumo-certo. Mudam os gêneros mas permanecem os conflitos. Há também a galera que pega geral, meninos e meninas disputando na cama o título de o mais esperto ou safado, na linha “não tenho gosto, tenho pressa” ou “estou me jogando e fazendo currículo”. Por outro lado, absolutamente oposto, há anos não rolavam tantos casamentos como agora, entre a galera dos 30. Até pedir em namoro está se usando novamente – óbvio que o pedido vem depois do sexo e no meio da paixão inicial. No episódio 02, o Pio chama a Lulu de namorada e ela logo pergunta: “isso é um pedido?”.
No mais, está claro para nós que ser gay deixou de ser um drama. Nem os pais – deste grupo classe média mente aberta do qual estamos falando – estão preocupados com isso. Beijo gay só é escândalo na novela das nove. As meninas que gostam de meninas estão mais soltas nesta cena antes dominada pelos rapazes. E são femininas e lindas – sem o estereótipo da sapata masculinizada – e mais abertas que os meninos para as múltiplas escolhas. Por que escolher um lado da moeda se podemos aproveitar os dois?
Juntamos toda essa conversa e muitas outras intermináveis – sem o menor rigor científico, antropológico ou sociológico, e criamos o fio condutor
DoAmor. Decidimos, como
Pio diz no episódio 01, que não seria – usando a definição de
Walter Benjamin – uma “história de pescador”, com reviravoltas mirabolantes e feitos inacreditáveis, mas uma “história de camponês”, corriqueira, cotidiana, onde todos pudessem se reconhecer. E concluímos através do Pio, em sala de aula, ainda citando Benjamin:
“às vezes, o que está muito perto dos nossos olhos, é aquilo que não conseguimos enxergar”.
Quase Hype – A séria inspira (e transpira) arte e muito do que chamamos de “hipster” (ou o alternativo com toques retrô) se faz presente de forma que conquistou muito este público. Foi proposital trabalhar a arte visual, os figurinos e demais detalhes desta forma ou apenas resultado de uma pesquisa pra compor a personagem Lulu (do meio publicitário que já é cercado por estas formas de arte)?
Marcia Leite – Maria Flor detesta o termo hipster, que ela considera o oposto de uma coisa legal. Mas eu entendo que hipster, como empregamos aqui no Brasil, significa ser contemporâneo, misturar informações do mundo todo com o que temos de mais original, cultivar a cultura pop de ponta, mergulhar no mundo online, estar atualizado com o inesgotável universo alternativo de músicas, filmes, espetáculos, artistas e performances. Chamamos de alternativo porque é uma alternativa à cultura geral dominante e (quase sempre) medíocre demais para os nossos olhos e ouvidos exigentes de excitações. Acho bacana que você tenha associado à série a este conceito porque realmente pensamos em tudo isso na pré produção da série. Quisemos, propositadamente, que o figurino, a arte e cenários, maquiagem, fotografia, estivessem um tom acima da vida normal, quase chegando ao exagero. Não só para dar uma cara atrativa e diferente à série mas também para marcar, reforçar, a imagem de personagens tão comuns, e acima de tudo para que a gente pudesse se divertir e botar no trabalho coisas bonitas das quais gostamos. Cortamos cabelos de todo o elenco, colocamos longos cabelos neo hippies (já que estamos usando estes termos, vamos nessa) na Lulu (Flor). Pintamos a Eva de cabelos vermelhos (a atriz Julia Lund é louríssima) e a doce e voluntariosa Bárbara (Diana Herzog) de louro branco, franja e toques retrô – uma menininha criada pela avó. Tomás (João Velho) tem cabelos sempre desgrenhados e camisetas divertidas. Lena (Lucia Bronstein), cabelos curtos, de quem investe em praticidade em vez da vaidade. Babaioff, que enxerga muito bem, adotou os óculos ícone dos emos (e haja rótulo!) para compor o professor charmosamente desleixado. Lucas é o estereótipo do hipster, escravo do estilo beirando a cafonice. A figurinista Bettine Silveira fez a festa nos figurinos e tipos. Na arte, Camila Moussallen não deixou por menos. Criou quarto negro, com espelhos bizantinos, para Eva. Um apartamento com mil referências de arte, lustres, objetos e tapetes, para a Lulu, sempre curiosa de tudo. A casa, antes de Pio e Tomás, meio improvisada como costumam fazer os meninos, muda inteiramente com a chegada de Lulu. Ela invade a vida do Pio e ocupa todas as paredes, todos os cantos e espaços, físicos ou não. Bárbara tem papéis de parede e bibelôs do tempo da avó, está cercada do mundo de antes. Lena, cada coisa em seu lugar, uma casa prática, funcional e principalmente aconchegante, como ela própria – o que Camila traduz com o tom quente das paredes – pintadas noite adentro pela equipe de arte -, de um azul profundo. E ainda tivemos o suporte luxuoso de artistas geniais, especialmente a paulistana Rochelle Costi, que nos cedeu as fotos enormes da sala de Lulu e Pio, incríveis! E o inglês Stephen Gill, da galeria londrinha Victoria Miro, que é amigo e nos autorizou a usar suas fotos para a personagem Lulu.
Quase Hype – A trilha sonora também parece cuidadosamente selecionada e trabalhada no alternativo (inclui Cícero, Robyn, Lana Del Rey, Tulipa Ruiz e até mesmo a pop Britney Spears). A música interage de forma muito natural com cada cena e isso torna tudo ainda mais real. Quem selecionou e como funcionou esse processo, foi muito bem pensado ou veio do que consomem?
Marcia Leite – A trilha vem do que a gente consome, toda a equipe, em especial, o Glauber Vianna, editor da série, a Maria Flor e eu mesma. Mas temos contribuições do Leonardo Nunes, finalizador da série, e até do tinturista dos cabelos da Eva, que enxergou no vermelho intenso um clima Lana Del Rey. A Britney surgiu com a Lorena Comparato. Flor e eu vimos Lorena numa festinha em casa de amigos, fazendo a imitação da Britney, e pensamos logo em trazer a cena para a série. Era hilária. Mas maior parte da trilha vem mesmo dos nossos HDs, das músicas que ouvimos e amamos. O único cuidado especial é fazer o mesmo recorte geracional: manter músicos e bandas mais ou menos na casa dos 30 anos. Já que estamos falando desta geração, legal mostrar um pouco do que estão compondo e cantando. A gente se diverte muito com a trilha mas nem sempre é fácil. Já chegamos a experimentar um monte de músicas, durante uma tarde inteira, até chegar à trilha certa. Não basta ser uma música sensacional, tem que trazer ritmo e clima, e entrar organicamente na cena. Nem sempre funciona. Mas há aqueles momentos em que a música entra na cena, de primeira, com perfeição, exatamente como você tinha imaginado. Aí é uma delícia. A gente fica feliz, vendo e revendo a cena, orgulhosos. Muito boa também é a sensação de estar retribuindo e distribuindo, de alguma maneira, o bem que estas músicas trazem para a vida da gente. E ver que isso é reconhecido e compartilhado por quem assiste. Viva o Twitter e o Facebook! É um privilégio ter a liberdade de tocar Little Dragon, James Blake, Cícero, Tulipa, Camelo, Mallu, Phoenix e um monte de gente legal, em vez de ser obrigado a vender sucessos de massa que não nos interessam. A gente se diverte homenageando o que gostamos: citamos músicas e filmes nos títulos dos episódios, colocamos, de repente, no meio da nossa narrativa, cenas do Whatever Works, do Woody Allen – que tentamos desesperadamente imitar em alguns planos. Quando nossos personagens vão ao teatro, mostramos a peça À Primeira Vista, com Mariana Lima e Drica Morais – musas! Temos cenas claramente inspiradas em outras cenas, de séries clássicas (uma delas foi ao ar na semana passada, no episódio 08, e ninguém se deu conta ainda!). A gente adora série de TV, somos todos viciados.
Quase Hype – Como é a relação Maria Flor e Márcia Leite, mãe e filha, e como se deu atravessar a zona de conforto (ou não) sendo companheiras de trabalho? Foi mais natural criar com a filha ou dirigir as cenas dela?
Marcia Leite – Criar juntas foi mais fácil, a gente tem ideias parecidas sobre muitas coisas. Vivemos juntas muitos anos até ela sair de casa. Somos muito amigas e companheiras. Confiamos na opinião uma da outra. Mas a intimidade ajuda e atrapalha. Não temos cerimônia nenhuma entre nós e, no turbilhão de um set de filmagem, lidando com questões de toda ordem, trabalhando 14 horas por dia, podemos divergir uma da outra, sem o cuidado necessário. Neste caso, a intimidade é ruim. No final do dia de filmagem, no entanto, sempre acabamos nos entendendo carinhosamente. Afinal, somos mãe e filha, é aquela história do amor incondicional, não há divórcio para a nossa relação. E aí, a intimidade é só faz bem.
Quase Hype – Projetos futuros? O que podemos esperar?
Marcia Leite – Na Fina Flor Filmes, estamos com vários projetos em andamento, torcendo para dar certo, inclusive, uma segunda temporada DoAmor. Mas nada certo, vamos ver. Só afirmamos qualquer coisa com contrato assinado. Tudo muda o tempo todo no mundo, né?